quarta-feira, 3 de junho de 2020

Memória Literária: De volta para minha terra.

Era final de inverno, quando o meu pai estava ouvindo o rádio na salinha de estar da nossa casinha de quatro águas, na Fazenda Cachoeira Grande. Uma notícia trágica o deixara triste, “Getúlio Vargas se suicidou”, ele disse para a minha mãe e eu com uma voz engasgada.
Naquele tempo, as coisas não estavam indo muito bem, estava faltando roupas e até mesmo o que comer. Eu não experimentava um pedaço de carne seca havia semanas. Tudo estava caro, dizia meu pai. Eu não entendia nada de inflação, mas essa era a palavra mais usada quando ele chegava da feira.
Meus irmãos e eu não podíamos estudar, pois além de não ter escola por perto, tínhamos que trabalhar na lavoura de feijão, arroz, mandioca, milho e café para ajudar no sustento da casa. Os poucos “réis” que o meu pai ganhava, mal dava para fazer a feira da semana e a farinha, não podia faltar na nossa mesa.
Eu tinha somente dez anos de idade, mas me lembro como se fosse hoje. A minha mãe fazia uma farofa deliciosa de “bofe” com arroz, o açafrão deixava a farinha que antes branquinha, amarelada. Não se via muitos pedaços de bofe ou de caroços de arroz, mas comíamos aquilo tudo embaixo do pé de café. Nessa rotina, passávamos a semana inteira.
Nesse vai e vem, de casa para a roça e da roça para casa, a única coisa para brincar eram as bonecas feitas de uma espiga de milho que eu pegava na roça.
A minha mãe era uma artista espetacular. Fazia as nossas roupas com um pano estampado comprado na feira, chamado chita. Um minutinho com uma linha e uma agulha na mão, ela criava e recriava diversos vestidos, saias, blusas, calças para mim e até casacos com outros panos, para os meus irmãos mais velhos.
Um dia, já mocinha, acordei toda ensanguentada. Fiquei com muito medo, mas minha mãe logo me deu uma série de explicações sobre menstruação e, por causa destas benditas regras, tive que usar uns pedaços de pano parecidos com fraldas, durante três ou quatro dias em cada mês. Eu achava aquilo horrível, mas com o passar dos tempos me acostumei.
Com os meus quinze anos de idade, o meu pai já falava em casamento, mas eu não dava “ligança”, quando ele falava desse assunto. Eu até namorava, mas o namoro não era igual os de hoje. Naquele tempo eu ia aos bailes de casamento, nas festas de igreja e, quando os rapazes se interessavam por mim, eles me enviavam bilhetes. A gente conversava e pegava nas mãos uns dos outros, dançávamos forrós ao som da sanfona até o dia clarear.
No outro dia, o meu namorado ia até a minha casa conversar com o meu pai para pedir permissão para namorar comigo.
Depois de muitos anos me casei e vivia andando pelo Brasil a fora procurando trabalho para poder ter uma vida melhor e criar os filhos. Nessa aventura morei em Minas Gerais, São Paulo, Paraná e em outras cidades do interior da Bahia. O engraçado de tudo é que em cada lugar que eu morava eu paria. Tenho filhos registrados em vários lugares.
Como a idade ia chegando, ficamos cansados de tanto trabalhar e viajar. Fizemos uma casinha na Fazenda Cachoeira Grande e daqui eu só saio para o cemitério.


DIAS. Viviane Luz. Memórias Literárias: De volta para minha terra. Produção orientada pelo professor Euler Jackson Jardim dos Santos em agosto de 2016 no CEJSP - Centro Educacional Jerosmiro dos Santos Pereira. Povoado de Placa, Barra da Estiva Bahia. Disponível em: https://prosasobreversos.blogspot.com/

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